quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Filosofias Helenísticas e Medieval

Filosofias Helenísticas e Medieval

Filosofias Helenísticas
A busca da felicidade interior

Com a conquista da Grécia pelos macedônicos (322 a. C.), tem início o chamado período helenístico. Devido à expansão militar do Império Macedônico, efetuada por Alexandre Magno, o período helenístico caracterizou-se por um processo de interação entre a cultura grega clássica e a cultura dos povos orientais conquistados.
Alexandre Magno (o Grande, como ficou conhecido) foi um grande guerreiro e estrategista militar. Era macedônio como seu mestre, Aristóteles. Em dez anos conquistou um dos maiores impérios de toda a Antigüidade.
Na história da filosofia, a produção filosófica do período helenístico corresponde basicamente à continuação das atividades das escolas platônica (Academia) e aristotélica (Liceu), dirigidas, respectivamente, pelos discípulos dos dois grandes mestres, Platão e Aristóteles.
Há, porém, uma transformação em relação ao passado nesse período. Os valores gregos mesclam-se com as mais diversas tradições culturais. A antiga liberdade do cidadão grego, exercida na autonomia de suas cidades, e desfigurada pelo domínio macedônico.

Da vida pública à vida privada

Com o declínio da participação do cidadão nos destinos da cidade, a reflexão política também se enfraqueceu. Substitui-se, assim, a vida pública pela vida privada como centro de reflexões filosóficas. As preocupações coletivas cedem lugar às preocupações individuais.
As principais correntes filosóficas desse período vão tratar da intimidade, da vida interior do homem. Formulam-se, então, diversos modelos de conduta, “artes de viver”, “filosofias de vida”. Parece que a principal preocupação dos filósofos e proporcionar aos indivíduos desorientados e inseguros com a vida social alguma forma de paz de espírito; isto é, alguma forma de felicidade interior em meio às atribulações da época. Um dos principais filósofos desse período, Epicuro, aconselha que as pessoas se afastassem dos perigos e intranquilidade da vida política e buscassem a felicidade em sua vida privada. “Viva oculto”, era um de seus mandamentos.
Entre as novas tendências desse período, devemos registrar correntes filosóficas como: o epicurismo, o estoicismo, o pirronismo e o cinismo.

Epicurismo

O epicurismo, fundado por Epicuro (324-271 a.C.), propunha que o ser humano deve buscar o prazer pois, segundo ele, o prazer é o princípio e o fim de uma vida feliz. No entanto, distinguia, dois grandes grupos de prazeres. No primeiro grupo estavam os prazeres mais duradouros, que encantam o espírito como, por exemplo: a boa conversação, a contemplação das artes, a audição da música etc. No segundo grupo estavam os prazeres mais imediatos, muitos dos quais movidos pela explosão das paixões e que, ao final, poderiam resultar em dor e sofrimento. Mas para desfrutarmos os grandes prazeres do intelecto precisamos aprender a dominar os prazeres exagerados da paixão: os medos, os apegos, a cobiça, a inveja. Os epicuristas buscavam a ataraxia, termo grego usado para designar o estado de ausência da dor, quietude, serenidade e imperturbabilidade da alma.
O epicurismo muitas vezes é confundido com um tipo de hedonismo marcado pela procura desenfreada dos prazeres mundanos. No entanto, o que o epicurismo defende é uma administração racional e equilibrada do prazer, evitando ceder aos desejos insaciáveis que, inevitavelmente, terminam no sofrimento.
Epicuro identificou o medo da morte como uma das mais principais fontes de todos os medos. Para combater este medo, desenvolveu um argumento interessante:
“Acostuma-te à idéia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo portanto quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos”.
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a Meneceu), p. 27 e 28 (Citação completa: Carta sobre a felicidade (a Meneceu).
Tradução e apresentação de Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore.
São Paulo, Editora UNESP, 2002.

Estoicismo

O estoicismo é a corrente filosófica de maior influência em seu tempo. Foi fundada por Zenão de Cicio (336-263 a.C.), localidade da ilha de Chipre. Este Zenão não deve ser confundido com Zenão de Eléia.
Os representantes desta escola, conhecidos como estóicos, defendiam que toda realidade existente é uma realidade racional. Todos os seres, os homens e a natureza, fazem parte desta realidade. O que chamamos de Deus nada mais é do que a fonte dos princípios que regem a realidade. Integrados à natureza, não existe para o ser humano nenhum outro lugar para ir ou fugir, além do próprio mundo em que vivemos. Somos deste mundo e, ao morrer, nos dissolvemos neste mundo.
Não dispomos de poderes para alterar, substancialmente, a ordem universal do mundo. Mas pela filosofia podemos compreender esta ordem universal e viver segundo ela. Assim, em vez do prazer dos epicuristas, Zenão propõe o dever da compreensão como o melhor caminho para a felicidade. Ser livre é viver segundo nossa própria natureza que, por sua vez, integra a natureza do mundo.
No plano ético, os estóicos defendiam uma atitude de austeridade física e moral, baseadas em virtudes como a resistência ante o sofrimento, a coragem ante o perigo, a indiferença ante as riquezas materiais. O ideal perseguido era um estado de plena serenidade para lidar com os sobressaltos da existência, fundado na aceitação e compreensão dos “princípios universais” que regem toda a vida.

Pirronismo

O pirronismo, de Pirro de Élida (365-275 a.C.) - segundo suas teorias, nenhum conhecimento é seguro, tudo é incerto. O pirronismo defendia que se deve contentar com as aparências das coisas, desfrutar o imediato captado pelos sentidos e viver feliz e em paz, em vez de se lançar à busca de uma verdade plena, pois seria impossível ao homem saber se as coisas são efetivamente como aparecem. Assim, o pirronismo é considerado uma forma de ceticismo, pois professa a impossibilidade do conhecimento, da obtenção da verdade absoluta.

Cinismo

O cinismo vem do grego kynos, que significa “cão”; cínico, do grego kynicos, significa “como um cão”. O termo cinismo designa a corrente dos filósofos que se propuseram a viver como os cães da cidade, sem qualquer propriedade ou conforto. Levavam ao extremo a filosofia de Sócrates, segundo a qual o homem deve procurar conhecer a si mesmo e desprezar todos os bens materiais. Por isso Diógenes, o pensador mais destacado dessa escola, é conhecido como o “Sócrates demente”, ou o “Sócrates louco”, pois questionava os valores e as convenções sociais e procurava viver estritamente conforme os princípios que considerava moralmente corretos.
Vivendo numa época em que as conquistas de Alexandre promovem o helenismo, mesclando culturas e populações, Diógenes também não tem apreço pela diferença entre grego e estrangeiro. Quando lhe perguntaram qual era sua cidadania, respondeu: sou cosmopolita, palavra grega que significa “cidadão do mundo”.
Há muitas histórias de sabedoria e humor sobre Diógenes. Conta-se, por exemplo, que ele morava num barril e que, certa vez, Alexandre Magno decidiu visitá-lo. De pé em frente de sua “casa”, Alexandre perguntou se havia algo que ele, como Imperador, poderia fazer em benefício do filósofo. Diógenes respondeu prontamente: sim, podes sair da frente do meu sol. Diz a lenda que Alexandre, impressionado com o desprezo do filósofo pelos bens materiais, comentou: se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes. O artigo do quadro desenvolve reflexões atuais a partir de outra história de Diógenes.

O barril e a esmola

Zombavam de Diógenes. Além de morar num barril, volta e meia era visto pedindo esmolas às estátuas. Cegas por serem estátuas, eram duplamente cegas porque não tinham olhos - uma das características da estatuária grega. (...).
Perguntaram a Diógenes por que pedia esmola às estátuas inanimadas, de olhos vazios. Ele respondia que estava se habituando à recusa. Pedindo a quem não o via nem o sentia, ele nem ficava aborrecido pelo fato de não ser atendido.
É mais ou menos uma imagem que pode ser usada para definir as relações entre a sociedade e o poder, Tal como as estátuas gregas, o poder tem os olhos vazados, só olha para dentro de si mesmo, de seus interesses de continuidade e de mais poder.
A sociedade, em linhas gerais, não chega a morar num barril. Uma pequena minoria mora em coisa mais substancial. A maioria mora em espaços um pouco maiores do que um barril. E há gente que nem consegue um barril para morar, fica mesmo embaixo da ponte ou por cima das calçadas.
Morando em coisa melhor, igual ou pior do que um barril, a sociedade tem necessidade de pedir não exatamente esmolas ao poder, mas medidas de segurança, emprego, saúde e educação. Dispõe de vários canais para isso, mas, na etapa final, todos se resumem numa estátua fria, de olhos que nem estão fechados: estão vazios. (...)
CARLOS HEITOR CONY.
Folha de S. Paulo. 5 jan. 2000.

Representação de Diógenes no barril onde morava. Desprezando as convenções e as hierarquias da sociedade, enalteceu o que para ele era o maior de todos os prazeres: a liberdade.

PERÍODO GRECO-ROMANO
A Filosofia pagã e a penetração do cristianismo

A O último período da filosofia antiga, conhecido como greco-romano, corresponde, em termos históricos, à fase de expansão militar de Roma (desde as Guerras Púnicas, iniciadas em 264 a.C., até a decadência do Império Romano, em fins do século V da era cristã). Trata-se de um período longo em anos, mas pouco notável no que diz respeito à originalidade das ideias filosóficas.
Os principais pensadores desse período, como Sêneca, Cícero, Plotino, Plutarco, dedicaram-se muito mais à tarefa de assimilar e desenvolver as contribuições culturais herdadas principalmente da Grécia clássica do que de criar novos caminhos para a filosofia.
A progressiva penetração do cristianismo no decadente Império Romano é uma das características fundamentais desse período. A difusão e a consolidação do cristianismo, através da Igreja Católica, atuaram no sentido de dissolver a força da filosofia grega clássica, que passou a ser qualificada de pagã (própria dos povos não-cristãos).

O pensamento Cristão: a patrística e a escolástica

“Quem não se ilumina com o esplendor de todas as coisas criadas, é cego.
Quem não desperta com tantos clamores, é surdo.
Quem, com todas essas coisas, não se põe a louvar a Deus, é mudo.
Quem, a partir de indícios tão evidentes, não volta a mente para o primeiro princípio, é tolo”.
São Boaventura

IGREJA CATÓLICA
Filosofia medieval e cristianismo

Ao longo do século V d. C., o Império Romano do Ocidente sofreu ataques constantes dos “povos bárbaros”. Do confronto desses povos invasores com os romanos desenvolveu-se uma nova estruturação da vida social européia, que corresponde ao período medieval.
Em meio ao esfacelamento do Império Romano, decorrente, em grande parte, das invasões germânicas, a Igreja Católica conseguiu manter-se como instituição social. Consolidou sua organização religiosa e difundiu o cristianismo, preservando, também, muitos elementos da cultura greco-romana.
Apoiada em sua crescente influência religiosa, a Igreja passou a exercer importante papel político na sociedade medieval. Desempenhou, às vezes, a função de órgão supranacional, conciliador das elites dominantes, contornando os problemas das rivalidades internas da nobreza feudal. Conquistou, também, vasta riqueza material: tomou-se dona de aproximadamente um terço das áreas cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a principal base da riqueza.

Conflitos e conciliação entre fé e razão

Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganadoras especulações da “filosofia", segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo.
São Paulo
Como instituição mais rica e influente da Idade Média, a Igreja Católica - ou figuras poderosas do clero - financiou e inspirou grande parte da arte e da produção cultural desse período.
No plano cultural, a Igreja exerceu ampla influência, traçando um quadro intelectual em que a fé cristã se tornou o pressuposto (isto é, o antecedente necessário) de toda vida espiritual.
Em que consistia essa fé?
Consistia na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens. Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e interpretadas segundo a autoridade da Igreja.
De acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada das verdades reveladas _ especialmente aquelas verdades consideradas essenciais ao homem e que dizem respeito à sua salvação. Nesse sentido, afirmava Santo Ambrósio (340-397, aproximadamente): “Toda verdade, dita por quem quer que seja, é do Espírito Santo”.
Isso significava que toda investigação filosófica ou cientifica não poderia, de modo algum, contrariar as verdades estabelecidas pela fé católica. Em outras palavras, os filósofos não precisavam mais se dedicar à busca da verdade, pois ela já teria sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonstrar racionalmente as verdades da fé.
Não foram poucos, porém, aqueles que dispensaram até mesmo essa comprovação racional da fé. Foi o caso de religiosos que desprezavam a filosofia grega, sobretudo porque viam nessa forma pagã de pensamento uma porta aberta para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia. Heresia: qualquer ato, palavra ou doutrina contrário ao que foi estabelecido pela Igreja, em termos de fé. Na sua origem grega, heresia significava escolha, uma preferência por uma doutrina. Herege era a pessoa que escolheu uma determinada heresia.
Por outro lado, surgiram pensadores cristãos que defenderam o conhecimento da filosofia grega, percebendo a possibilidade de utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo. Conciliado com a fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os descrentes e derrotar os hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer os descrentes, tanto quanto possível, pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios divinos, somente acessíveis à fé.
Nesse contexto, a filosofia medieval pode ser dividida em quatro momentos principais:
O dos padres apostólicos, do início do  cristianismo (séculos I e II), entre os quais se incluem os apóstolos, que disseminavam a palavra de Cristo, sobretudo em relação a temas morais. Entre estes se destaca a figura de São Paulo pelo volume e valor literário de suas epístolas (cartas escritas pelos apóstolos);
O dos padres apologistas (séculos III e IV), que faziam a apologia do cristianismo contra a filosofia pagã. Entre os apologistas destacam-se Orígenes, Justino e Tertuliano, este o mais intransigente na defesa da fé contra a filosofia grega;
O da patrística (de meados do século IV ao século VIII), no qual se busca uma conciliação entre a razão e a fé e se destacam a figura de Santo Agostinho e a influência da filosofia platônica;
O da escolástica (do século IX a XVI), no qual se buscou uma sistematização da filosofia cristã, sobretudo a partir da interpretação da filosofia de Aristóteles, e se destaca a figura de Santo Tomás de Aquino.
A característica fundamental dessa filosofia medieval é a ênfase nas questões teológicas, destacando-se temas como: o dogma da Trindade, a encarnação de Deus-filho, a liberdade e a salvação, a relação entre fé e razão.
Destacaremos, neste livro, os dois momentos mais importantes da filosofia medieval – a patrística e a escolástica.

Patrística. Matriz platônica nos argumentos da fé

No processo de desenvolvimento do cristianismo, tornou-se necessário explicar seus preceitos as autoridades romanas e ao povo em geral. A Igreja Católica sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela força. Tinham de ser apresentados de maneira convincente, mediante um trabalho de pregação e conquista espiritual.
Foi assim que os primeiros padres da Igreja se empenharam na elaboração de diversos textos sobre a fé e a revelação cristãs. O conjunto desses textos ficou conhecido como patrística, por terem sido escritos principalmente por esses  grandes padres da Igreja.
Padres da Igreja: denominação dada aos primeiros pensadores e escritores da Igreja Católica, especialmente aqueles que viveram entre os séculos IV e VIII. A palavra padre tem aqui o sentido de “pai” pois foram eles que formularam os primeiros conceitos da fé e tradição católica.
Uma das principais correntes da filosofia patrística, inspirada na filosofia greco-romana, tentou munir a fé de argumentos racionais, ou seja, buscou a conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão. Seu principal expoente foi Agostinho, posteriormente consagrado santo pela Igreja Católica.

Santa Agostinho: o pecado é o afastamento de Deus

Compreender para crer, crer para compreender.
Santo Agostinho
Aureliano Agostinho (354-430) nasceu em Tagaste, província romana situada na África, e faleceu em Hipona, hoje localizada na Argélia. Nessa última cidade ocupou o cargo de bispo da Igreja Católica.
Até completar 32 anos, no entanto, Agostinho não era cristão. Havia tido até então uma vida voltada aos prazeres do mundo e, de uma ligação amorosa ilícita para a época, nascera-lhe o filho Adeodato. Havia sido também professor de Retórica em escolas romanas.
Em sua formação intelectual, Agostinho despertou primeiramente para a Filosofia com a leitura de Cícero. Cícero (106-43 a.C.): orador e político romano que se inspirou no ecletismo - a busca de um acordo entre os ensinamentos das escolas platônica, aristotélica, hedonista etc. Posteriormente, deixou-se influenciar pelo maniqueísmo, doutrina persa que afirmava ser o universo dominado por dois grandes princípios opostos, o bem e o mal, mantendo uma incessante luta entre si.
Mais tarde, já insatisfeito com o maniqueísmo, viajou para Roma e Milão, entrando em contato com o ceticismo e, depois, como neoplatonismo, movimento filosófico do período greco-romano, desenvolvido por pensadores inspirados em Platão, que se espalhou por diversas cidades do Império Romano, sendo marcado por sentimentos religiosos e crenças místicas.
Cresceu e se aprofundou, então, em Agostinho uma grande crise existencial, uma inquietação quase desesperada em busca de sentido para a vida. Foi nesse período crítico que ele se encontrou com Santo Ambrósio, bispo de Milão, sentindo-se extremamente atraído por suas pregações. Pouco tempo depois, converteu-se ao cristianismo, tornando-se seu grande defensor pelo resto da vida.
A superioridade da alma sobre o corpo

Em sua obra, Agostinho argumenta em favor da superioridade da alma humana, isto é, a supremacia do espírito sobre o corpo, a matéria. Para ele, a alma teria sido criada por Deus para reinar sobre o corpo, para dirigi-lo à pratica do bem.
O homem pecador, entretanto, utilizando-se do livre-arbítrio, costumaria inverter essa relação, fazendo o corpo assumir o governo da alma. Provocaria, com isso, a submissão do espírito à matéria, o que seria, para ele, equivalente à subordinação do eterno ao transitório, da essência à aparência.
A verdadeira liberdade estaria na harmonia das ações humanas com a vontade de Deus. Ser livre é servir a Deus, diz Agostinho, pois o prazer de pecar e a escravidão.

Boas obras ou graça divina?

Segundo o filósofo, o homem que trilha a via do pecado só consegue retornar aos caminhos de Deus e da salvação mediante a combinação de seu esforço pessoal de vontade e a concessão, imprescindível, da graça divina. Sem a graça de Deus, o homem nada pode conseguir. Mas nem todas as pessoas deverão receber essa graça, mas somente os predestinados à salvação. De acordo com a doutrina da graça de Agostinho, a salvação não dependeria das boas ações dos indivíduos, mas da boa vontade de Deus para definir seus eleitos.
A questão da graça, tal como colocada pelo filósofo, marcou profundamente o pensamento medieval cristão. E a doutrina da predestinação à salvação foi, posteriormente, adotada por alguns ramos da teologia protestante ( Reforma Protestante). Na mesma época de Agostinho, outro teólogo, Pelágio, afirmava que a boa vontade e as boas obras humanas seriam suficientes para a salvação individual. Era a doutrina do pelagianismo.
Agostinho colocou-se contra essa doutrina e, no concílio de Cartago do ano de 417, o papa Zózimo condenou o pelagianismo como heresia e adotou a concepção agostiniana de necessidade da graça divina, doada livremente por Deus aos seus eleitos.
A condenação do pelagianismo se explica pelo fato de que conservava a noção grega de autonomia da vida moral humana, isto é, a noção de que o homem pode salvar-se por si só, sendo bom e fazendo boas obras, sem a necessidade da ajuda divina. Essa noção se chocava com a ideia de submissão total do homem ao Deus cristão, defendida pela Igreja. “O fato de assim a Igreja ter se pronunciado por tal doutrina assinalou o fim da ética pagã e de toda a filosofia helênica”.
Uma conseqüência disso é a forma como se passa a enfatizar a subjetividade, a individualidade. Enquanto na filosofia grega o indivíduo se identificava com o cidadão (isto é, o homem social, político), a filosofia cristã agostiniana enfatiza no indivíduo sua vinculação pessoal com Deus, a responsabilidade de cada indivíduo pelos seus atos e exalta a salvação individual.

Liberdade humana e pecado

Outro aspecto fundamental da filosofia agostiniana e o entendimento de que a vontade é uma força que determina a vida e não uma função específica ligada ao intelecto, tal como diziam os gregos. Agostinho contrapõe-se, dessa forma, ao intelectualismo moral, que teve sua expressão máxima em Sócrates.
Isso significa que, de acordo com Agostinho, a liberdade humana e própria da vontade e não da razão. E é nisso que reside à fonte do pecado. O indivíduo peca porque usa de seu livre-arbítrio para satisfazer uma vontade má, mesmo sabendo que tal atitude é pecaminosa. Nas palavras de Agostinho, vejamos as causas mais comuns do pecado:
 “O ouro, a prata, os corpos belos e todas as coisas são dotadas dum certo atrativo. O prazer de conveniência que se sente no contato da carne influi vivamente. Cada um dos outros sentidos encontra nos corpos uma modalidade que lhes corresponde. Do mesmo modo a honra temporal e o poder de mandar e dominar encerram também um brilho, donde igualmente nasce a avidez e a vingança. (...) A vida neste mundo seduz por causa duma certa medida de beleza que lhe é própria, e da harmonia que tem com todas as formosuras terrenas.
Por todos estes motivos e outros semelhantes, comete-se o pecado, porque, pela propensão imoderada para os bens inferiores, embora sejam bons, se abandonam outros melhores e mais elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à vossa verdade e à vossa lei.”
 Santo Agostinho. Confissões, p. 53 (Citação
V completa para o final do livro: São Paulo,
Abril Cultural, 1984 - Os Pensadores)
Por isso, Agostinho afirma que o homem não pode ser autônomo em sua vida moral, isto é, deliberar livremente sobre sua conduta. No entanto, como o que conduz seus atos é a vontade e não a razão, o homem pode querer o mal e praticar o pecado, motivo pelo qual ele necessita da graça divina para salvar-se.

Precedência da fé sobre a razão

Agostinho também discutiu a diferença existente entre fé cristã e razão, afirmando que a fé nos faz crer em coisas que nem sempre entendemos pela razão: “creio tudo o que entendo, mas nem tudo que creio também entendo. Tudo o que compreendo conheço, mas nem tudo que creio conheço”. SANTO AGOSTINHO. De magistro, p. 319.
Baseando-se no profeta bíblico Isaias, dizia ser necessário crer para compreender, pois a fé ilumina os caminhos da razão, e que a compreensão nos confirma a crença posteriormente. Isso significa que, para Agostinho, a fé revela verdades ao homem de forma direta e intuitiva. Vem depois a razão esclarecendo aquilo que a fé já antecipou.

A herança do helenismo

O pensamento agostiniano (de Agostinho) reflete, em grande medida, os principais passos de sua trajetória intelectual anterior à conversão ao catolicismo, que teve a influencia do helenismo. Vejamos alguns elementos:
 Do maniqueísmo ficou uma concepção dualista no âmbito moral, simbolizada pela .luta entre o bem e o mal, a luz e as trevas, a alma e o corpo. Nesse sentido, dizia que o homem tem uma inclinação natural para o mal, para os vícios, para o pecado. Insistia em que já nascemos pecadores (pecado original) e somente um esforço consciente pode nos fazer superar essa deficiência “natural”. Considerando o mal como o afastamento de Deus, defendia a necessidade de uma intensa educação religiosa, tendo como finalidade reduzir essa distância.
Do ceticismo ficou a permanente desconfiança nos dados dos sentidos, isto é, no conhecimento sensorial, conhecimento que nos apresenta uma multidão de seres mutáveis, flutuantes e transitórios.
Do platonismo, Agostinho assimilou a concepção de que a verdade, como conhecimento eterno, deveria ser buscada intelectualmente no “mundo das idéias”. Por isso defendeu a via do autoconhecimento, o caminho da interioridade, como instrumento legítimo para a busca da verdade. Assim, somente o íntimo de nossa alma, iluminada por Deus, poderia atingir a verdade das coisas. Da mesma forma que os olhos do corpo necessitam da luz do sol para enxergar os objetos do mundo sensível, os “olhos da alma” necessitam da luz divina para visualizar as verdades eternas da sabedoria.